A ocultação deliberada do real, de fatos sobre os
quais tem conhecimento, dizia Perseu Abramo, é um dos padrões de manipulação
dos meios de comunicação
por Pedro
Rafael Vilela*, do Fórum Nacional pela Democratização da Comuicação publicado
14/11/2016
Uma mudança constitucional tão drástica deveria provocar intenso debate na sociedade em qualquer país. No Brasil, a mídia o esconde
FNDC – Não é a primeira vez, nem será a última,
mas não deixa de ser simbólica a (não) cobertura da mídia brasileira sobre os
protestos e paralisações de diversas categorias profissionais ocorridos em mais
de 21 estados e no Distrito Federal, na última sexta-feira (11), no Dia Nacional
de Greve. Os atos, organizados por movimentos sociais e pelas principais
centrais sindicais do país, contou com a participação de dezenas de milhares de
trabalhadores e trabalhadoras, além de estudantes, que interromperam suas
atividades em setores como transporte público, limpeza urbana, bancos, escolas
e indústria, e foram às ruas das maiores cidades brasileiras para protestar
contra a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 55, em tramitação no
Senado. Se aprovada, essa PEC vai impor um congelamento nos gastos públicos,
como saúde, educação, cultura e saneamento básico pelos próximos 20 anos, uma
tragédia em termos de direitos sociais sem precedentes na história do Brasil.
Uma mudança
constitucional tão drástica, num país que tivesse um sistema de comunicação
plural e diverso, deveria gerar, para dizer o mínimo, um intenso debate na
sociedade, com participação maciça da própria mídia na visibilidade e no
esclarecimento das reais implicações da medida. Não é o que ocorre no Brasil.
A irrealidade da mídia
Em um de
seus ensaios mais célebres, o jornalista e sociólogo Perseu Abramo descreveu
com acuidade as múltiplas formas de manipulação da informação por parte da
imprensa. Ao distinguir os quatro padrões básicos de distorção da realidade
praticados pela mídia, Abramo chama a atenção para o padrão de ocultação, um
dos mais recorrentes. Em suas próprias palavras, “é o padrão que se refere à
ausência e à presença dos fatos reais na produção da imprensa. Não se trata,
evidentemente, de fruto do desconhecimento, e nem mesmo de mera omissão diante
do real. É, ao contrário, um deliberado silêncio militante sobre os fatos da
realidade”.
Um outro
padrão concebido por Perseu Abramo, o da fragmentação, tem a ver com a forma
como a mídia, ao noticiar um fato, decompõe a totalidade desse fato, operando
um processo de seleção de alguns aspectos, em detrimento de outros. É o que
ocorre, por exemplo, quando a ênfase das matérias trata apenas das
consequências dos bloqueios no trânsito e fechamento de rodovias, como que opondo
os objetivos dos manifestantes ao do conjunto da população. Ao mesmo tempo que
ressalta esse aspecto, silencia sobre as motivações das paralisações e se
recusa até mesmo a dar voz aos envolvidos nas mobilizações para dialogue com a
sociedade. Trata-se de uma inversão rasteira dos fatos e da própria realidade,
mas que é absolutamente corriqueira na cobertura da mídia. Basicamente, esses
dois padrões de manipulação, facilmente verificáveis, deram a tônica do
noticiário na (não) repercussão das manifestações e paralisações no Dia
Nacional de Greve. O Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC)
acompanhou com atenção a cobertura das principais redes de televisão, jornais e
portais de notícias ao longo da sexta-feira e no dia seguinte. O resultado? Um
tapa na cara da democracia e um descompromisso brutal com o direito à
comunicação e informação da população brasileira.
Televisão: a gente não se vê por aqui
As
principais emissoras de televisão aberta parecem ter disputado entre si o
título de quem mais ignorou as expressivas mobilizações do Dia Nacional de
Greve. O Jornal Nacional, da Globo, noticiário de maior audiência na
tevê brasileira, decidiu simplesmente não exibir um segundo sequer dos atos que
paralisaram algumas das maiores cidades do país, apostando forte na estratégia
da ocultação. Na opinião de Perseu Abramo, em seu ensaio sobre manipulação da
grande imprensa, a mídia é mais perversa por aquilo que ela não veicula do que
por aquilo que leva ao ar. É como se ela definisse os fatos sociais que merecem
ser considerados fatos jornalísticos ou não. “Todos os fatos, toda realidade
pode ser jornalística, e o que vai tornar jornalístico um fato independe de
suas características reais intrínsecas, mas depende, sim, das características
do órgão de imprensa, de sua visão de mundo, de sua linha editorial”.
A Globo
News, canal de notícias das Organizações Globo na televisão por assinatura,
que, durante as manifestações pró-impeachment de Dilma Rousseff dedicava
praticamente a totalidade de sua programação aos protestos, dessa vez apenas
cumpriu um lamentável protocolo de cobrir com distanciamento e até desprezo os
atos do Dia Nacional de Greve. Exibindo notas curtas e panorâmicas ao longo de
sua programação, sem sequer ouvir os porta-vozes dos atos, a emissora deu
ênfase justamente às interrupções no trânsito e paralisação dos transportes
públicos em cidades como São Paulo e Brasília. No programa Estúdio I, que se
define pela característica de noticiário com análise, e vai ao ar de segunda à
sexta, às 14h, a cobertura dos protestos seguiu a lógica de relatar
superficialmente os acontecimentos. No momento de analisar a notícia, os
participantes do programa praticamente ignoraram as causas do protesto e logo
mudaram de assunto. Para se ter uma ideia, o programa dedicou mais tempo à
matéria sobre o site de dicas econômicas de moda da filha do Donald Trump do
que à repercussão da greve nacional, incluindo aí os comentários de estúdio.
No Jornal
da Record, uma nota de 37 segundos, lida pelo apresentador, apenas
mencionou protestos de estudantes e servidores do Rio de Janeiro contra atrasos
nos salários por parte do governo estadual, com ênfase na repressão da Polícia
Militar. O Jornal da Band, levado ao ar na noite da sexta-feira (11), como que
reconhecendo a dificuldade em ignorar as manifestações, optou por um caminho
misto, entre a ocultação e a distorção com doses generosas de criminalização da
manifestação política e do próprio direito de greve. Na matéria de um minuto e
10 segundos, o telejornal enfocou imagens das manifestações pela ótica da
paralisação do transporte público e bloqueio de ruas e rodovias, ressaltando a
ideia de que os protestos “atrapalharam muita gente”. Os dois únicos
entrevistados foram pessoas que criticaram as interrupções no trânsito, e não
houve qualquer menção mais clara sobre os motivos do protesto.
Já o SBT
Brasil, dentre os principais telejornais, foi o que exibiu a matéria mais
equilibrada. Com 4min27 de duração, a reportagem seguiu a ênfase de relatar
criticamente os bloqueios e paralisações de rodovias na primeira parte da
matéria, mas foi a única a dar voz para lideranças dos movimentos (Raimundo
Bonfim, da Central de Movimentos Populares, e Rodrigo Rodrigues,
secretário-geral da CUT Brasília). Destacou passeatas e protestos de estudantes
e professores no Rio Grande Sul, que resultaram em forte repressão da Brigada
Militar. Bom lembrar que diversas categorias de servidores estaduais do RS
sofrem com salários atrasados há meses. A própria Brigada Militar, que reprimiu
os protestos, corre o risco de nem sequer receber o 13º salário em decorrência
da política de austeridade do governo Ivo Sartori (PMDB-RS), que tem penalizado
principalmente os serviços públicos no estado.
Ocultação nos jornais
Os três
maiores jornais impressos do país, em suas edições publicadas no sábado (12),
decidiram deliberadamente ignorar os atos ocorridos no dia anterior. Até mesmo
a Folha de S. Paulo, que se vende como veículo aberto ao debate e que busca
exibir diversos pontos de vista políticos diferentes, não dedicou uma linha
sequer ao assunto. No jornal O Globo, da família Marinho, idem. O
Estadão, tido como o mais conservador entre os três, publicou uma nota pequena,
na página interna B3, de economia, com cerca de 10 linhas, praticamente um
registro dos protestos, e não uma cobertura. Nos portais de notícias UOL e G1,
foram publicadas matérias sobre os protestos, repetindo a fórmula panorâmica de
descrição dos atos a partir do ângulo das interrupções no transporte e
paralisação das rodovias. Nenhuma dessas matérias ganhou destaque na página
principal desses portais. Para encontra-las, os interessados teriam que buscar
principalmente na página de últimas notícias ou no buscador do próprio site, o
que diminui muito o potencial de audiência dessas notícias.
Censura privada na TV pública
Se o
comportamento dos veículos privados de comunicação não chega a surpreender, foi
lamentável constatar que as mesmas fórmulas de ocultação e cobertura
superficial se aplicaram também à matéria exibida pela TV Brasil, emissora da
Empresa Brasil de Comunicação (EBC), no seu principal telejornal, o Repórter
Brasil, na noite de sexta-feira. Em menos de dois minutos, a “reportagem”
exibiu trechos dos protestos e paralisações em diversos estados. Novamente,
destaque para os bloqueios de rodovias e paralisações no transporte público e
nas escolas. Nenhum porta-voz dos trabalhadores foi ouvido para contextualizar
o significado daqueles atos. Oferecer mecanismos para debate público acerca de
temas de relevância nacional, como preconiza a lei de criação da EBC, mandou
lembranças dessa vez. Esse episódio não parece estar desconectado da grave
intervenção promovida por Michel Temer sobre a EBC, que praticamente eliminou
as garantias de autonomia e independência de sua programação frente ao governo,
ao extinguir principalmente o Conselho Curador e os mandatos do
diretor-presidente e do diretor-geral.
O contraponto
Coube aos
meios de comunicação alternativos oferecer uma cobertura decente e proporcional
ao tamanho das paralisações e mobilizações da última sexta-feira. Apenas para
ficar em um dos exemplos mais expressivos, a Mídia Ninja utilizou seus canais
nas redes sociais para distribuir, ao longo de toda a sexta-feira, um rico
conteúdo das manifestações, que incluía, principalmente, vídeos e fotos, com
registro de paralisações em mais de 20 cidades, incluindo diferentes
categorias: metroviários, rodoviários, professores, estudantes, trabalhadores
da limpeza urbana, e muito mais. Vale destacar que, ao contrário da cobertura
televisiva, onde as filmagens se deram com distanciamento, partir do topo de
edifícios ou do alto dos helicópteros, a cobertura da Mídia Ninja se dá
diretamente das manifestações, abrindo espaço para falas dos trabalhadores e
capturando uma dimensão mais orgânica do significado desses atos. O portal
Brasil de Fato também publicou dezenas de matérias e postagens destacando a
abrangência das paralisações em todo o país.
Esse
contraponto só reforça uma conclusão inevitável: a grande imprensa só não
cobriu o Dia Nacional de Greve porque não quis. Ou melhor, porque tratou-se de
uma deliberada decisão editorial de ignorá-lo e, com isso, alienar ainda mais o
conjunto da sociedade sobre o debate do presente e do futuro do país. Não há
democracia sem mídia democrática. E, sem democracia, não se constrói um país
justo. Re-existir sempre, calar jamais!
* Pedro
Rafael é jornalista, mestre em comunicação pela Universidade de Brasília (UnB)
e secretário-executivo do FNDC. Colaboraram Bia Barbosa e Renata Mielli.
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